O varzeano e corintiano Arthur Tirone relembra da época em que os clubes eram legítimos representantes dos bairros. Nascido e criado na Barra Funda-SP, o autor define como seria o jogo dos seus sonhos e a final de 2014.
Por Arthur Tirone, via Copa 2014
- Como pode passar assim por três, quatro? Tinha que dar uma botinada no homem! Tinha que dar nesse merdinha igual ele deu no Batista! Mas não, o Alemão joga com ele no Nápoles e não quis “pegar”! Ah, se fosse eu...
A frase enfurecida foi proferida por meu avô – e por outros milhões de brasileiros – logo após a eliminação canarinho na Copa de 90. Este, ao lado do cardíaco Brasil x Holanda de 94, foi o jogo que mais me marcou. A derrota doída, porém, deixa uma cicatriz que não se apaga. Este é, portanto, meu maracanazzo particular. Sendo assim, Caniggia, pra mim, é apenas uma corruptela de Ghiggia.
Sou um sujeito varzeano, nascido e criado na Barra Funda, onde ainda moro. Aqui, como em outros lugares não menos tradicionais dessa cidade – cito Mooca, Bela Vista e Penha -, se cultua um futebol que se vê nas quebradas, nas peladas, nas ruas de terra; um futebol de criança, de bolinha de meia e de bola já oval de tão velha. Aqui, como de resto em vários cantos do Brasil – e por isso somos o país do futebol -, o esporte bretão é coisa séria!
Image by Thomaz Farkas/Acervo IMS |
Hoje ainda restam alguns, raríssimos, sendo o campo da Associação Atlética Anhangüera um deles. É lá que fui criado e que jogo todos os domingos. Foi lá que meu pai estreou em 1967 e meu avô em 1933.
O clube foi fundado em 1928 em meio a um boom de clubes sociais que pipocavam pelos bairros da cidade. Naquele tempo o crescimento da cidade ainda não havia suplantado uma grande instituição: o Bairro. Era no bairro que as pessoas viviam, trabalhavam e se divertiam. Os clubes eram legítimos representantes dos bairros. Havia clubes de todas as espécies: alguns só tinham o futebol, outros – como o Anhangüera -, além do futebol, tinham esportes variados como bocha e pingue-pongue e uma sede social respeitável, com bailes e concursos de todos os tipos.
O Anhangüera era composto basicamente pelos filhos de imigrantes italianos que se estabeleceram no bairro anos antes. Era gente trabalhadora, em sua maioria pequenos comerciantes, tapeceiros, sapateiros. Meu avô, Osvaldo Tirone, era carroceiro de burros. Fazia viagens ao moinho Manetti Gamba – hoje Moinho Santo Antonio – para buscar sacos de farinha, sempre entornando seu garrafão de vinho.
Dizem que foi um dos maiores valentes da região. Capitão do Sport do Anhangüera por vários anos, era um beque que sabia jogar, mas batia sem a menor complacência: no primeiro sinal de desrespeito o adversário voava.
Dizem que foi um dos maiores valentes da região. Capitão do Sport do Anhangüera por vários anos, era um beque que sabia jogar, mas batia sem a menor complacência: no primeiro sinal de desrespeito o adversário voava.
Eu dizia que os clubes representavam seus bairros. No começo da década de 50, o Sulamericano do Bom Retiro dispunha de um timaço, com um meio campista de classe chamado Perez, bom de bola e cheio de tarimba. Teve um jogo em 1952 entre Anhangüera e o Sulamericano que, por causa do Perez, tomou proporções inimagináveis. O problema é que o Perez era uruguaio e o jogo acabou virando um genérico de Brasil e Uruguai de dois anos antes; o Anhangüera se viu na obrigação de vingar o País; e o alviverde do Sulamericano, na pessoa do Perez, virou a Celeste. O jogo estava duríssimo, mas não completou cinco minutos; o bambu gemeu e o gringo teve que correr horrores dos “brasileiros” da Barra Funda.
Não quero pregar a violência, pelo contrário; mas acho que o fair play tem limite. O futebol, pra um varzeano como eu, não pode ser concebido como mero espetáculo. Não admito o futebol como entretenimento, com clientes em vez de torcedores, jogadores inertes e profissionais a níveis inabaláveis. O Alemão... O Alemão tinha que ter dado uma saraivada no Maradona!
Em 2014 quero uma final entre Brasil e Argentina. Não para redimir o Alemão, mas porque o maior clássico do mundo merece uma final de Copa. Só por isso. Não sairá de mim, caso o Brasil ganhe – tem que ganhar! -, aquele gol do Caniggia. Assim como aquela final de 50 pairará sobre o maior do mundo para sempre. Deixemos o maracanazzo, o Barbosa e os 200 mil em paz.
Em 2014 quero uma final entre Brasil e Argentina. Não para redimir o Alemão, mas porque o maior clássico do mundo merece uma final de Copa. Só por isso. Não sairá de mim, caso o Brasil ganhe – tem que ganhar! -, aquele gol do Caniggia. Assim como aquela final de 50 pairará sobre o maior do mundo para sempre. Deixemos o maracanazzo, o Barbosa e os 200 mil em paz.
O jogo dos meus sonhos da Seleção Brasileira, porém, vos confesso, seria contra um time que tivesse, entre seus jogadores, o goleiro Ramon Quiroga do Peru-78, o zagueiro Vicente de Portugal-66 e o volante Obdulio Varela do Uruguai-50. Que este jogo durasse apenas cinco minutos, e que esses três tivessem um dia como aquele do coitado do Perez. Sorte deles que é sonho, porque nesse jogo meu velho avô veste a camisa 3 canarinho.
Arthur Tirone, corintiano, é nascido na mesma rua que nasceram seu pai, palmeirense, e seu avô, corintiano. É formado em administração de empresas, trabalha com eventos e consultoria comercial. Gosta de escarafunchar as histórias de seu bairro, a Barra Funda. Mantém um blog no endereço www.anhanguera.blogspot.com e é diretor social do Clube Anhangüera, onde promove um projeto que recebe grandes nomes do samba brasileiro.
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